sábado, 3 de setembro de 2011

Fernanda Montenegro está em cartaz este fim de semana no Sesc Niterói como a pensadora Simone de Beauvoir

Por: Aline Novaes 03/09/2011

Viver sem tempos mortos

A dama do teatro brasileiro apresenta o monólogo baseado em cartas de Simone de Beauvoir Foto: Divulgação

A dama do teatro brasileiro apresenta o monólogo baseado em cartas de Simone de Beauvoir Foto: Divulgação

Fernanda Montenegro está em cartaz este fim de semana no Sesc Niterói como a pensadora Simone de Beauvoir

Niterói está em clima de festa neste final de semana. Não poderia ser diferente: a cidade vai receber e assistir à apresentação de um dos maiores ícones do teatro brasileiro. Fernanda Montenegro brindará os niteroienses com espetáculo no Sesc, no Centro, hoje e amanhã.
A visita é ainda mais especial pela qualidade do espetáculo. Viver Sem Tempos Mortos estreou em 2009 e, desde então, é um sucesso por onde passa. O monólogo é baseado em cartas escritas por Simone de Beauvoir, uma das pensadoras mais importantes do século XX, cuja obra e vida influenciaram gerações de mulheres em todo o mundo – inclusive a própria Fernanda. As cartas em questão fazem parte da correspondência da escritora com seu companheiro, Jean-Paul Sartre, criador da corrente filosófica do Existencialismo.
O encontro de Fernanda Montenegro com a compilação do pensamento de Simone de Beauvoir é uma modesta aproximação com aquela que foi uma grande e inesgotável escritora, pensadora e ensaísta, responsável por revolucionar a visão do feminino na sociedade e nos relacionamentos.
Fernanda Montenegro construiu uma sólida carreira na dramaturgia, através do teatro, cinema ou televisão. Seu talento é admirável, sua experiência indiscutível, assim firme e delicada é a alma dessa estrela que começou sua trajetória na era de ouro do rádio e agora celebra 60 anos de profissão.
Reflexiva, crítica, filosófica, humana, afetuosa e simples. Assim é Fernanda Montenegro, que dignifica o ofício da arte e a nossa nação.
O Sesc Niterói fica na Rua Padre Anchieta, 56, Centro. Informações pelo telefone 2719-9119/ramal 231.
Qual é a reação do público em espetáculos como esse, mais reflexivo?
Nós temos uma longa experiência de diversas plateias, já apresentamos em São João de Meriti, São Gonçalo, Nova Iguaçu, Friburgo, e é uma coisa espantosa porque as pessoas assistem de uma forma reflexiva. Durante um período, nós fizemos o espetáculo pela periferia a preço popularíssimo, até de graça. A plateia era muito popular e ninguém ia embora, todo mundo assistia. Depois, a gente fazia debates falando sobre liberdade, direito da mulher. É muito bonito, muito comovedor. Para minha vida então nem se fala.
Em que se identifica e em que se distancia de Simone de Beauvoir? Por quê?
Simone é uma mulher que sistematizou a visão do feminismo. Ela não só foi buscar milhões de referências como também sistematizou o feminino. A partir daí, você tem uma visão muito inteira das nossas carências, das nossas conquistas, que a gente tem que ir à luta. Há um mundo de convívio de sexos, de seres humanos, de visão do outro totalmente avançado a partir de Simone de Beauvoir.
O que mais admira na vida dela?
Admiro a perseverança dela. Ela fez a vida dela como quis fazer, arriscou sua sobrevivência várias vezes. Foi uma mulher apaixonada, totalmente dionisíaca, que nunca se furtou de experiências. Um ser humano muito vivo, racional e, ao mesmo tempo, apaixonado. Se debruçou sobre a velhice, se debruçou sobre a condição da mulher.  Não teve nenhum pudor de se jogar e desmembrar as zonas mais escuras da alma humana.

O que pensa do existencialismo?
O existencialismo é aquela visão de que o homem está entregue a ele mesmo, você faz a sua existência, não tem um Deus, tudo começa e acaba em si mesmo. Portanto, quem assina o melhor e o pior do mundo é o próprio homem. Eu acho que por mais que eu queira racionalizar ou raciocinar sobre Deus, a minha cultura me leva a uma crença, a uma crença na dúvida. Mas, na verdade, Santo Agostinho diz: “Se você duvida, é porque crê”. Eu estou nessa visão agostiniana (risos). Por outro lado, eu também acho que você tem que assinar a sua vida, saber o que quer, tomar um rumo, ser produtivo, ser independente, ter liberdade e buscar liberdade.
Lembra quando foi a primeira vez que leu Sartre? Qual foi a impressão?
Esse movimento todo foi pós 2ª Guerra, o mundo estava completamente destruído, a Europa completamente destruída. A gente se perguntava: “Se há um Deus, por que esse horror?”. Eu também acho que o homem tem que fazer a sua vida e Deus tem outros problemas maiores para resolver do que ficar por aqui tomando conta das ambições, das deturpações humanas, das desgraças que o ser humano traz com ele. Então, esse pensamento de que o homem é responsável por sua existência e tudo começa a partir dele é interessante de se observar, até porque é muito fácil você distribuir o seu fazer ou não fazer a Deus, enfim, a um ser superior. Se a gente é imagem dele, então vamos trabalhar (risos).     
Eu assisti à estreia desse espetáculo no Teatro Fashion Mall há dois anos. Lembro que no final da peça você foi aplaudida durante muito tempo. Lembro também dos seus olhos marejados. Lembra daquela emoção?
Essa emoção acontece todo dia porque ela (Simone de Beauvoir) fala de coisas tão profundas, tão humanas, principalmente, da finitude. Você chegar ao fim da vida e fazer uma revisão, o que você fez de melhor e de pior, e, principalmente, as pessoas que você vai perdendo pela vida. Ganha também, mas as perdas geralmente a gente leva mais, as coisas que machucam. Às vezes, a gente pensa que a felicidade é uma obrigação e que o pior da vida é o que marca muito, justamente, porque poderia ser diferente.
Já se apresentou em Niterói algumas vezes. O que acha da cidade e do público daqui?
É uma cidade mais calma, bonita e bem tratada, pelo menos pelos espaços que eu tenho andado. Todas as vezes que me apresentei em Niterói, tive um público muito bom, muito presente. Já fui moradora de Piratininga. Durante um período, tive uma casa na praia, mas depois vendi. A gente toma tantos rumos na vida, viaja tanto que não dá para ter casa de praia. É uma ilusão.
Sua trajetória como artista começa no tempo do rádio. Já vivenciou muitos momentos do cenário artístico. A arte, de uma forma geral, já teve como proposta fundamental o engajamento político-social. O que percebe como mudança significativa quando comparamos com os dias de hoje?
Hoje, nós temos uma ideia muito presente do social, o indivíduo pensando a respeito - fazendo alguma coisa ou não -, mas pelo menos pensando a respeito. Isso, nos velhos tempos, era algo que a gente achava que era de alguém, do governo, do poderoso chefão, sei lá. Hoje em dia, nós temos bastante consciência de que há uma miséria muito grande em torno de nós. Acho que se faz pouco, mas a consciência existe e isso é um grande ganho.
Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas desde que decidiu ser atriz?
É uma ilusão achar que só enfrentamos dificuldades no início de carreira. Dificuldades você tem pela vida afora, pela carreira afora. Ninguém chega e diz: “que bom, cheguei aqui e agora é só o melhor do mundo”. A cada momento da vida profissional, existem dificuldades que devem ser vencidas. Então, quando eu me lembro do começo, foi difícil. Um pouco depois, foi difícil. Há 20 anos, foi difícil. Há 30 anos, foi difícil. Eu tenho 60 anos de palco. A cada momento, a cada decênio, a cada quinquênio, eu tenho dificuldades enormes para vencer. Não vejo que, entrando nessa ou em qualquer outra carreira, você vai chegar a um determinado momento e dizer: “Ai, que bom, parei agora, só tenho o melhor. Acabou a luta, acabou a batalha”.
O que ser atriz representa para você?
Em primeiro lugar, um ofício. Em segundo lugar, uma vocação. Graças a Deus, eu vim para ela e ela se cumpriu. Se bem ou mal, fica para quem julgar. Vim porque fui chamada. Essa profissão me deu tudo o que tenho: educação, cultura, uma família e uma visão de mundo – claro que não a visão acadêmica ou estrutural – no puro sentimento, no puro realizar.
O que mais gosta de fazer quando não está trabalhando?
Nada. Eu trabalho muito. Então, quando não estou trabalhando, é sentar e ficar olhando para dentro de mim.
Você construiu uma família linda. O que sente quando está junto de seus filhos e netos?
Um dia lá, na mocidade extrema, a gente sonha com uma família, netos, filhos, marido e amigos. Uma das coisas boas que posso dizer da minha vida foi eu e o Fernando (Torres, já falecido) termos construído uma família, uma carreira, uma profissão com resultados que eu não posso dizer que não são visíveis – porque eu seria uma cretina se dissesse isso. Então, muito bem. Ótimo. Graças a Deus.
O FLUMINENSE
http://jornal.ofluminense.com.br/editorias/cultura-e-lazer/viver-sem-tempos-mortos

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